A Perigosa Retroatividade dos Direitos Antidumping
1. Introdução
A aplicação de medidas antidumping no comércio exterior brasileiro está regulada pelo Acordo Antidumping da OMC (GATT 1994), incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 9.019/1995, complementada pelo Decreto nº 8.058/2013. Essas normas estabelecem as condições e os procedimentos para a aplicação de direitos antidumping, incluindo a possibilidade de sua aplicação retroativa.
A retroatividade dos direitos antidumping é uma exceção à regra de que os direitos só podem ser aplicados a partir da publicação da medida. No entanto, em determinadas situações excepcionais, o Brasil permite a cobrança retroativa para operações realizadas antes da publicação do ato que estabelece o direito. Esta retroatividade visa coibir a corrida às importações e mitigar o dano grave e irreparável à indústria nacional.
Particularmente acho isso um absurdo e ilegal, conforme comentarei ao final.
O presente artigo analisa o fundamento legal e normativo da retroatividade dos direitos antidumping, os requisitos para sua aplicação, a forma de cobrança, as garantias processuais para os importadores e os principais precedentes judiciais e administrativos sobre o tema.
2. Fundamentos Legais da Retroatividade dos Direitos Antidumping
A retroatividade dos direitos antidumping tem amparo legal nos seguintes diplomas normativos:
Acordo Antidumping da OMC (Artigo 10.2 e 10.6): Autoriza a cobrança retroativa em casos de corrida às importações, desde que o dano à indústria doméstica seja grave e de difícil reparação.
Retroatividade em Medidas Provisórias (Artigo 10.2): No caso de medidas provisórias (medidas preliminares), o Acordo Antidumping permite que, se houver conversão de uma medida provisória em uma medida definitiva, os direitos definitivos podem ser cobrados retroativamente para o período em que a medida provisória esteve em vigor.
Condições para Cobrança Retroativa (Artigo 10.6): A autoridade investigadora (como a Receita Federal ou o DECOM, no Brasil) precisa demonstrar que:
- O volume de importações aumentou de forma significativa (de forma súbita e substancial) durante o período investigado.
- Este aumento ocorreu de maneira injustificada e tinha o objetivo de escapar dos efeitos da futura aplicação de medidas antidumping.
- Caso isso seja provado, os direitos antidumping podem ser aplicados retroativamente por um período de até 90 dias antes da imposição de medidas provisórias.
Lei nº 9.019/1995 (Art. 8º): Estabelece que os direitos antidumping, em regra, só podem ser aplicados a partir da publicação do ato que os institui, mas abre exceção para os casos de retroatividade previstos nos Acordos Internacionais (Acordo Antidumping).
Decreto nº 8.058/2013 (Arts. 114 e 115): Define o prazo máximo de 90 dias de retroatividade e os critérios que devem ser verificados para sua aplicação, incluindo a demonstração de corrida às importações e o dano grave e irreparável à indústria nacional.
3. Requisitos para a Aplicação da Retroatividade
A aplicação da retroatividade dos direitos antidumping não é automática. Para que a medida seja legítima, é indispensável a verificação de dois requisitos cumulativos, já especificados anteriormente e agora melhor explicados:
3.1. Corrida às Importações
A corrida às importações ocorre quando, após o início de uma investigação de dumping, verifica-se um aumento expressivo e atípico no volume de importações antes da publicação das medidas provisórias ou definitivas. O objetivo dos importadores, nesse caso, é antecipar operações para evitar o pagamento do direito antidumping que será aplicado no futuro.
Indicadores de Corrida às Importações:
Aumento abrupto no volume de importações no período investigado (análise comparativa com períodos anteriores).
Importações realizadas por novos importadores que não tinham histórico prévio de importação do produto.
Importações com prazos de entrega acelerados ou aquisições de volumes muito superiores à média histórica.
3.2. Dano Grave e de Difícil Reparação
A mera constatação da corrida às importações não basta para justificar a retroatividade. É necessário, também, demonstrar que a corrida às importações resultou em um dano grave e irreparável à indústria nacional.
Para verificar o dano, o DECOM (Departamento de Defesa Comercial) considera os seguintes elementos:
Perda de participação de mercado da indústria nacional.
Redução de preços praticados pela indústria nacional em virtude da concorrência desleal.
Impacto nos lucros e no emprego no setor industrial doméstico.
4. Limites Temporais da Retroatividade
O prazo máximo para a aplicação retroativa dos direitos antidumping é de 90 dias antes da data de publicação da medida antidumping provisória.
Exemplo prático:
Data de publicação da medida provisória: 01/07/2024
Data de início da retroatividade: 02/04/2024 (90 dias antes)
Esse prazo de 90 dias é contado de forma retroativa a partir da data da publicação da medida provisória e não retroage ao início da investigação. Portanto, o período de retroatividade é limitado e deve estar expressamente previsto no ato que estabelece o direito antidumping.
5. Procedimento de Cobrança Retroativa
O procedimento de cobrança retroativa está previsto no art. 8º da Lei 9.019/1995, com as seguintes etapas principais:
Intimação do Importador: A Receita Federal intima o importador para o pagamento dos direitos antidumping retroativos. O importador tem um prazo de 30 dias para pagar o valor devido, sem a incidência de juros de mora e multas.
Lavratura do Auto de Infração: Se o importador não pagar no prazo de 30 dias, a Receita Federal lavra um auto de infração, aplicando a multa de mora (20%) e os juros SELIC a partir do vencimento do prazo para pagamento.
Defesa Administrativa e Judicial: O importador pode apresentar impugnação administrativa e, em caso de indeferimento, recorrer ao CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Caso o recurso administrativo seja indeferido, o importador pode propor ação judicial.
Argumentos de defesa mais comuns:
Ausência de fundamentação técnica na constatação de "corrida às importações".
Falta de comprovação do dano irreparável à indústria nacional.
Erro na delimitação do prazo retroativo.
6. Ilegalidade da Cobrança Retroativa
Embora a Lei nº 9.019/1995 e o Decreto nº 8.058/2013 prevejam a retroatividade dos direitos antidumping, há fundamentos constitucionais e infraconstitucionais para contestar a cobrança. A retroatividade fere, em tese, os seguintes princípios:
Princípio da Irretroatividade (art. 150, III, "a", CF/88): A cobrança de direitos antidumping sobre operações anteriores à sua vigência violaria a proibição de cobrança de tributos sobre fatos geradores passados. Embora prevaleça o entendimento de que o direito antidumping não é tributo, alguns doutrinadores e advogados de defesa de importadores tentam aplicar o princípio da isonomia e as garantias tributárias (como a irretroatividade) ao direito antidumping.
Ato Jurídico Perfeito (art. 5º, XXXVI, CF/88): Importações realizadas de acordo com a legislação vigente constituem atos jurídicos perfeitos que não podem ser modificados por normas posteriores.
Norma do CTN (art. 105, CTN): O fato gerador consumado (registro da DI e o desembaraço aduaneiro) não pode ser atingido por legislação posterior que cria ou aumenta o encargo do importador.
Portanto, sim, é possível alegar que a retroatividade dos direitos antidumping é ilegal, especialmente se for demonstrado que a cobrança retroativa atinge operações já finalizadas. Essa tese pode ser utilizada em defesas administrativas no CARF e ações judiciais para evitar ou anular a cobrança.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
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