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Triangulação via Uruguai para afastar sobretaxas norte-americanas: análise jurídica, riscos e porque não recomendo

  • Foto do escritor: Rogerio Chebabi
    Rogerio Chebabi
  • 29 de ago.
  • 8 min de leitura
Triangulação via Uruguai para afastar sobretaxas norte-americanas: análise jurídica, riscos e por que não recomendo

*Antes de ler o artigo, sugiro leitura do Glossário ao final.


Introdução


Tem se difundido a ideia de remeter mercadorias de origem Brasil ao Uruguai para ali realizar uma “industrialização” mínima — com o objetivo de reetiquetar a origem para “Uruguai” — e, então, exportar aos Estados Unidos sem a sobretaxa aplicável a bens de origem brasileira. A proposta é tentadora no curto prazo; no longo, é uma encrenca.


Este artigo, em tom conservador, examina o contexto tarifário recente nos EUA, expõe o marco jurídico de origem e de repressão a falsidades aduaneiras e conclui, sem rodeios: não recomendo a estratégia quando não houver transformação substancial real e comprovada.


1) Contexto tarifário recente nos EUA


Em 31 de julho de 2025, a Casa Branca publicou ato presidencial que majora tarifas de importação, incluindo um adicional de 40% sobre a maioria dos bens de origem Brasil, com efetivação a partir de 6 de agosto de 2025 (com janelas e exceções pontuais por produto). Na prática, muitos itens passaram a enfrentar carga total próxima de 50%, a depender do HTSUS (Harmonized Tariff Schedule) aplicável.


O alvo da medida é a origem; o trajeto logístico (passar pelo Uruguai) é irrelevante se a origem permanecer “Brasil”.


Do lado do Uruguai, não há Acordo de Livre-Comércio com os EUA (apenas um TIFA em vigor), tampouco benefícios do GSP (o país foi graduado do programa anos atrás). Em suma: “originar no Uruguai” não gera preferência tarifária automática; só afastaria a sobretaxa se a origem de fato se tornasse uruguaia.


2) A regra que manda no jogo: substantial transformation


Fora de acordos preferenciais, a definição de origem nos EUA se pauta pela substantial transformation: a operação no segundo país deve gerar artigo novo, com nome, caráter ou uso distintos. Atos meramente formais — reembalagem, rotulagem, corte básico, testes simples, montagem trivial — não mudam a origem. A CBP decide caso a caso, com base na complexidade do processo, perda de identidade dos insumos e alteração funcional do bem.


Em termos práticos: se o processamento uruguaio for de “fachada”, a mercadoria continuará sendo de origem Brasil — e a sobretaxa incidirá do mesmo modo.


3) O que acontece quando a origem é “maquiada”


A tentativa de “mudar” a origem por simples trânsito ou por processamento mínimo pode caracterizar:

(i) infração civil por falsidade material, sujeita a multas que podem alcançar o valor doméstico da mercadoria no caso de fraude; e

(ii) crime federal por entrada com declaração falsa, com risco de perdimento e demais consequências penais.


Para bens sujeitos a antidumping/direitos compensatórios (AD/CVD), ainda pesa o mecanismo EAPA, que permite a concorrentes denunciar evasão por transshipment e aciona medidas imediatas (suspensão de liquidação, garantias, etc.). Embora a EAPA se aplique especificamente a AD/CVD (e não à nova sobretaxa “Brasil”), ela ilustra a capilaridade de enforcement (capacidade de um sistema de fiscalização de alcançar muitos pontos, com alto nível de detalhe e por múltiplos caminhos) da CBP contra triangulações artificiais.


4) “Industrialização” no Uruguai: quando poderia funcionar


Somente quando houver processo industrial genuíno em território uruguaio que gere perda de identidade do insumo brasileiro e nasça um novo artigo (função/uso distintos), com valor agregado significativo e documentação robusta. Em cenário prudente, recomenda-se:


  1. Dossiê técnico-probatório: BOM detalhado, roteiros de produção, laudos de QA/QC, evidências fotográficas e em vídeo, costing e relatórios de engenharia.

  2. “Reasonable care”: políticas e controles internos alinhados às publicações de orientação da CBP (inclusive sobre marcação de origem).

  3. Ruling vinculante prévio de origem (e, se pertinente, de classificação) junto ao CBP.


Sem isso, o plano degringola: certificados de origem privados não vinculam a CBP, que examina o processo fabril real e cruza dados (fornecedor, BOM, custos, fluxos e registros fabris).



5) Riscos operacionais e econômicos (o “custo oculto” da aventura)


  • Apreensão ou retenção de cargas; exigências de prova extensas (BOM, ordens de produção, vídeos de linha, relatórios de teste), atrasos e sobrecustos logísticos.

  • Auto de infração com multas relevantes (19 U.S.C. § 1592), inclusive sobre entradas passadas (retroatividade por auditorias) e risco adicional sob 18 U.S.C. § 542.

  • Interrupção de cadeia de suprimentos por medidas cautelares; danos reputacionais com clientes e financiadores de trade.

  • Em cenários AD/CVD, investigações EAPA vêm crescendo e recuperando valores expressivos — sinal claro da vigilância atual.


6) Alternativas lícitas e conservadoras


(a) Tariff engineering sério (sem artifícios): ajustes de projeto/função para classificação em HTSUS menos oneroso, sustentados por notas técnicas, catálogos, ensaios e, idealmente, rulings. Isso não “muda” a origem; apenas otimiza a tarifa dentro da legalidade.


(b) Gestão de exceções da medida de 2025: algumas famílias de produtos foram parcial ou totalmente excluídas; a análise é item a item (HTS-a-HTS), considerando redação e anexos do ato presidencial e notas técnicas.


(c) Realocação produtiva com regras de origem claras: avaliação de manufatura em país com acordo aplicável (p. ex., USMCA/México), cumprindo integralmente as ROOs e buscando ruling quando houver dúvida; atalhos continuam não sendo uma opção.


7) Conclusão (posição opinativa)


À luz do marco jurídico aduaneiro norte-americano e do contexto tarifário de 2025, não recomendo a estratégia de “simular” industrialização no Uruguai para afastar a sobretaxa devida a bens de origem Brasil. Sem substantial transformation efetiva e comprovada, a origem permanece brasileira, a sobretaxa incide integralmente e os riscos de responsabilização civil e penal são altos.


Mesmo nos raros casos em que haja transformação real, a orientação conservadora é só operar com ruling prévio e dossiê técnico robusto. O velho conselho continua insuperável: compliance primeiro; criatividade, só dentro da lei.


Rogerio Zarattini Chebabi

OAB/SP 175.402

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GLOSSÁRIO


AD/CVD — Antidumping / Countervailing Duties


Tradução: direitos antidumping / compensatórios

O que é: Sobre-tarifas aplicadas a produtos que (i) entram com preço de dumping (AD) ou (ii) recebem subsídio governamental distorcivo no país exportador (CVD).

Base legal: Tariff Act of 1930 (19 U.S.C. § 1671 e segs.).

Observação: quando há AD/CVD, surgem mecanismos específicos de combate à evasão (vide EAPA).


BIS — Bureau of Industry and Security


O que é: Órgão do Departamento de Comércio dos EUA responsável por controle de exportações (EAR).

Contexto: relevante para tecnologia sensível e sanções; menos central em origem, mas ronda o tema “compliance”.


Binding Ruling (Part 177)


Tradução: ruling vinculante (parecer vinculante)

O que é: Decisão formal da CBP sobre classificação, origem, marcação etc., requerida antes da importação.

Base: 19 C.F.R. Part 177.


BOM — Bill of Materials


Tradução: lista técnica de materiais/componentes

O que é: Estrutura do produto (peças, insumos, quantidades, roteiros); documento-chave para provar transformação substancial.

Nota: sem BOM, não há história convincente de manufatura.


CBP — U.S. Customs and Border Protection


Tradução: Aduana dos EUA

O que é: Autoridade de fiscalização aduaneira e de fronteira.

Poderes: apreender, multar, exigir garantias, auditar, e — quando necessário — lembrar ao importador que “reasonable care” não é peça de ficção.


COO — Certificate of Origin


Tradução: certificado de origem

O que é: Documento que atesta o país de origem.

Caveat: não vincula a CBP por si só; se o processo fabril não sustenta, o papel vira confete.


EAPA — Enforce and Protect Act


Tradução: Lei de Fiscalização e Proteção (mecanismo anti-evasão)

O que é: Procedimento administrativo da CBP para investigar evasão de AD/CVD (ex.: transshipment).

Ferramentas: suspensão de liquidação, cobrança retroativa, exigência de cash deposits.

Quem aciona: inclusive concorrentes domésticos.


Enforcement


Tradução: fiscalização/coerção regulatória

O que é: Conjunto de atos e programas de aplicação da lei: inspeções, holds, auditorias, penalidades, ações civis/criminais.

Na prática: alta capilaridade = muitos pontos e momentos de controle.


Essential Character


Tradução: caráter essencial

O que é: Conceito das Regras Gerais de Interpretação do HS para determinar a classificação quando um artigo é composto.

Relação: pode influenciar tanto classificação quanto debates de transformação


EO — Executive Order


Tradução: ordem executiva

O que é: Ato do Presidente dos EUA com força normativa no âmbito federal (ex.: criação de sobretaxas, medidas emergenciais).

Lembrete: EO manda; compliance obedece.


FTA — Free Trade Agreement


Tradução: acordo de livre-comércio

O que é: Tratado com preferências tarifárias e regras específicas de origem (ROOs).

Ex.: USMCA (EUA-México-Canadá). Uruguai não possui FTA com os EUA.


GSP — Generalized System of Preferences


Tradução: Sistema Geral de Preferências

O que é: Preferência unilateral dos EUA a países em desenvolvimento, quando vigente e aplicável.

Nota: mesmo quando em vigor, exige cumprimento estrito de regras e elegibilidade.


HTS/HTSUS — Harmonized Tariff Schedule (of the United States)


Tradução: Tarifa Harmonizada dos EUA

O que é: Nomenclatura tarifária e alíquotas dos EUA (equivalente ao NCM/TEC, com especificidades locais).


Marking (Country of Origin Marking)


Tradução: marcação do país de origem

O que é: Regras de rotulagem/gravura do país de origem no produto/embalagem.

Base: 19 C.F.R. Part 134.

Alerta: marcação errada = autuação certa.


Melt and Pour / Smelt and Cast


Tradução: fundir e vazar (aço) / fundir e moldar (alumínio)

O que é: Requisitos de origem/rastrabilidade em metais; operações posteriores (laminação/corte) não “apagam” a origem metalúrgica.


Mitigation Guidelines


Tradução: diretrizes de mitigação

O que é: Parâmetros internos da CBP para reduzir penalidades conforme fatores atenuantes (ex.: prior disclosure).


OGA/PGA — Other Government Agencies / Partner Government Agencies


Tradução: agências governamentais parceiras

O que é: FDA, EPA, USDA etc. que também regulam a entrada.

Moral da história: não é “só a aduana”.


Prior Disclosure


Tradução: autodenúncia prévia

O que é: Mecanismo para o importador confessar violações antes de ciência formal da investigação, buscando mitigação de penalidades.

Base: 19 U.S.C. § 1592(c)(4).


Reasonable Care


Tradução: diligência razoável

O que é: Dever do importador de garantir exatidão e compliance (classificação, origem, valor, recordkeeping).

Na prática: políticas internas + dossiê robusto = melhor seguro jurídico.


Recordkeeping


Tradução: guarda documental

O que é: Obrigações de manter livros/arquivos por prazos legais (tipicamente 5 anos).

Sanção: perda de benefícios, presunções desfavoráveis e multas.


RVC — Regional Value Content


Tradução: conteúdo de valor regional

O que é: Cálculo de valor agregado regional exigido pelas ROOs de FTAs (ex.: USMCA).

Não confundir: ROO de FTA ≠ teste genérico de substantial transformation fora de FTA.


Rules of Origin (ROOs)


Tradução: regras de origem

O que é: Critérios que determinam se um produto “origina” em certo país (mudança de classificação, RVC, processos específicos).

Dualidade: (i) ROOs de FTAs; (ii) Substantial transformation como regra geral fora de FTAs.


Seizure / Forfeiture


Tradução: apreensão / perdimento

O que é: Medidas patrimoniais sobre mercadorias irregulares.

Quando: fraude, falsidade, sanções, violações graves.


Substantial Transformation


Tradução: transformação substancial

O que é: Teste tradicional de origem dos EUA fora de FTA: o processamento deve gerar artigo novo com nome, caráter ou uso distintos.

Mera maquiagem: reembalagem, montagem simples, testes básicos — não bastam.


Tariff Engineering


Tradução: engenharia tarifária

O que é: Planejamento lícito de design/funcionalidade para enquadrar o produto em posição tarifária menos onerosa.

Regra de ouro: sem artificialidade; produto tem de ser de fato o que se declara.


TIFA — Trade and Investment Framework Agreement


Tradução: acordo-quadro de comércio e investimento

O que é: Arranjo de diálogo; não confere preferências tarifárias.

Ex.: EUA-Uruguai: TIFA, mas sem FTA.


Transshipment


Tradução: transbordo (com conotação de triangulação indevida)

O que é: Envio via terceiro país para mascarar origem verdadeira.

Risco: quando há AD/CVD → EAPA; fora disso → 19 U.S.C. § 1592/18 U.S.C. § 542.


U.S.C. / C.F.R.


Tradução: United States Code / Code of Federal Regulations

O que é: Compilações de leis federais (U.S.C.) e regulamentos (C.F.R.).

Para origem/aduana: 19 U.S.C. (leis aduaneiras) e 19 C.F.R. (regulamentos CBP).


USMCA


Tradução: Acordo Estados Unidos-México-Canadá

O que é: FTA que substituiu o NAFTA, com ROOs próprias e exigentes, especialmente em automotivo.


Valuation (Customs Valuation)


Tradução: valoração aduaneira

O que é: Determinação do valor aduaneiro (método do valor de transação, ajustes, partes relacionadas etc.).

Distinga: transfer pricing ≠ valoração aduaneira

QA/QC — Quality Assurance / Quality Control


Tradução: garantia da qualidade / controle da qualidade

O que é: Conjunto de procedimentos, testes e registros que demonstram conformidade do processo e do produto.

No contencioso de origem: prova técnica de que houve transformação real (ou de que não houve).


18 U.S.C. § 542


Tradução: crime de entrada por declaração falsa

O que é: Penaliza importação por meios fraudulentos ou declarações falsas materiais.

Efeito: risco penal + perdimento.


19 U.S.C. § 1592


Tradução: fraude/omissão material na importação

O que é: Tipifica violações civis por declarações/omissões materiais; multas de alto impacto (até o valor doméstico do bem em caso de fraude).


Termos afins úteis (sem sigla específica)


Country of Origin Marking — regras de rotulagem do país de origem (19 C.F.R. Part 134).

De Minimis Processing — processamento mínimo (não altera origem).

Entry / Liquidation — registro da entrada / consolidação final do lançamento aduaneiro.

Hold / Detention — retenção cautelar para conferência.

Mitigation / Petition for Remission — pedido de mitigação/perdão de penalidade.

Reasonable Care Program — guias e checklists da CBP para diligência do importador.

Supply Chain Traceability — rastreabilidade (cada vez mais cobrada em metais, químicos, têxteis).


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