Perícia aduaneira e os honorários abusivos cobrados dos importadores
A atividade pericial, fundamental para a elucidação de questões técnicas no âmbito do comércio exterior, tem sido alvo de debates acerca da legalidade dos valores cobrados por esses serviços. A Instrução Normativa da Receita Federal nº 2.086/2022 estabelece parâmetros para a remuneração de peritos, buscando coibir abusos e garantir a justa contraprestação pelos serviços prestados.
No entanto, a realidade demonstra que muitos peritos têm se utilizado de subterfúgios para burlar a legislação e cobrar valores exorbitantes, configurando uma relação de consumo abusiva e violando direitos dos contratantes. O presente artigo jurídico visa analisar a problemática da cobrança abusiva de honorários periciais no contexto do comércio exterior, à luz da legislação e da jurisprudência, com foco na relação de consumo e na possível configuração de crimes.
O Contexto da Perícia Aduaneira e a IN 2.086/2022
A Instrução Normativa da Receita Federal nº 2.086/2022 regulamenta a prestação de serviços de perícia para identificação e quantificação de mercadorias importadas ou a exportar. O artigo 44 da IN estabelece que os serviços de perícia serão remunerados de acordo com tabelas constantes no Anexo Único da norma, buscando evitar cobranças arbitrárias. Contudo, a prática revela que muitos peritos têm se utilizado da tabela da Associação de Assistentes Técnicos Aduaneiros do Brasil (AATAB), que não respeita os ditames da IN 2.086/2022.
A Relação de Consumo e a Vulnerabilidade do Contratante
A relação entre o perito e o contratante de seus serviços se configura como uma relação de consumo, na qual o perito é o fornecedor e o contratante é o consumidor. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica a essa relação, garantindo ao consumidor proteção contra práticas abusivas.
O princípio da vulnerabilidade, central no CDC, reconhece a desigualdade entre consumidor e fornecedor, especialmente no que tange ao conhecimento técnico e às informações sobre o serviço contratado. No contexto da perícia aduaneira, a vulnerabilidade do contratante é ainda mais acentuada, tendo em vista a complexidade do tema e a dependência do consumidor em relação ao serviço prestado pelo perito.
A Ilegalidade da Cobrança Abusiva e a Má-fé do Perito
Um processo em que atuei relatava um caso em que um perito, nomeado pela Receita Federal para atuar em um despacho aduaneiro, cobrou honorários muito acima daqueles previstos na IN 2086/2022. O perito, em vez de emitir um Recibo de Pagamento a Autônomo (RPA), como determina a norma, emitiu uma Nota Fiscal de Serviços de sua empresa, cobrando valores baseados na tabela da AATAB. Essa prática, segundo a petição, é comum entre peritos que buscam burlar a legislação e auferir lucros excessivos, configurando má-fé e abuso de direito, especialmente no Porto de Santos - SP.
O Perito como Servidor Público Credenciado e a Possibilidade de Improbidade Administrativa
A petição inicial do processo argumentava que o perito, ao ser credenciado pela Receita Federal com base na IN 2.086/2022, assume a condição de servidor público credenciado. Essa afirmação se baseia no fato de que o perito, ao prestar serviços de perícia para a Administração Pública, passa a representá-la em determinado ato, recebendo remuneração por essa atividade.
A Lei 10.833/2003, que dispõe sobre a fiscalização aduaneira, reforça essa interpretação ao incluir o perito na categoria de intervenientes em operação de comércio exterior. O artigo 76 da referida lei sujeita esses intervenientes a sanções administrativas em caso de descumprimento de suas obrigações, o que evidencia a natureza pública da função exercida pelo perito credenciado.
A equiparação do perito a um servidor público credenciado implica na possibilidade de responsabilização por crimes praticados por funcionários públicos, como os tipificados no Código Penal, e por atos de improbidade administrativa,A conforme a Lei 8.429/1992. A petição destacava que a conduta do perito em cobrar valores abusivos, em desacordo com a IN citada, poderia ser enquadrada como crime de concussão, que consiste em exigir vantagem indevida em razão da função pública.
A omissão da Receita Federal e a suspeita de divisão de honorários com o Auditor Fiscal conivente
No caso citado, a petição inicial afirmava que a Alfândega do Porto de Santos sempre teve conhecimento dessa prática ilegal e se mantém inerte, não tomando medidas para coibir os abusos praticados pelos peritos.
Essa omissão da Receita Federal agrava a vulnerabilidade do consumidor, que se vê obrigado a pagar valores abusivos para evitar represálias ou atrasos no despacho aduaneiro. Diante da inércia do poder público, resta ao consumidor buscar a tutela jurisdicional para fazer valer seus direitos e obter a restituição dos valores pagos em excesso.
Em alguns casos, há possibilidade de ser pensar que o valor cobrado a maior pelo perito seria dividido com o fiscal, que se omitiria diante da ilegalidade em troca de vantagem financeira.
Essa possibilidade, levanta sérias questões sobre a integridade do processo de fiscalização aduaneira e a lisura das relações entre importadores, peritos e fiscais. Afinal, o pagamento de valores indevidos, disfarçado de honorários periciais, poderia ser interpretado como uma forma de suborno, comprometendo a imparcialidade do fiscal e abrindo espaço para a prática de outros ilícitos, como a facilitação da entrada de mercadorias proibidas ou a sonegação de impostos.
A Repetição do Indébito e a Indenização por Danos Morais
O Código de Defesa do Consumidor prevê a repetição do indébito em dobro nos casos de cobrança de quantia indevida, salvo hipótese de engano justificável (art. 42, parágrafo único). No caso em tela, a cobrança abusiva de honorários periciais configura quantia indevida, sendo devida a restituição em dobro dos valores pagos a maior, acrescida de correção monetária e juros de mora. Além disso, a má-fé do perito e o descaso com o consumidor podem configurar dano moral, passível de indenização.
Conclusão
A cobrança abusiva de honorários periciais é uma prática ilegal que viola os direitos dos consumidores e configura má-fé por parte dos peritos.
A Instrução Normativa da Receita Federal nº 2.086/2022 estabelece parâmetros claros para a remuneração desses serviços, buscando evitar abusos e garantir a justa contraprestação. A inércia da Receita Federal em coibir essa prática agrava a vulnerabilidade do consumidor, que se vê obrigado a recorrer ao Judiciário para fazer valer seus direitos.
A restituição em dobro dos valores pagos em excesso, bem como a indenização por danos morais, são medidas que visam reparar o prejuízo sofrido pelo consumidor e punir o fornecedor pela prática abusiva. É fundamental que o Judiciário continue atuando de forma firme na proteção dos consumidores, coibindo práticas abusivas e garantindo o equilíbrio nas relações de consumo. Além disso, a possibilidade de responsabilização criminal dos peritos por crimes como concussão, bem como por atos de improbidade administrativa, reforça a necessidade de observância da legislação e de respeito aos direitos dos consumidores.
Em suma, a problemática da cobrança abusiva de honorários periciais no comércio exterior exige uma atuação conjunta do poder público, do Judiciário e da sociedade como um todo, visando garantir a transparência, a equidade e a justiça nas relações de consumo. A conscientização dos consumidores sobre seus direitos, a fiscalização efetiva por parte da Receita Federal e a aplicação rigorosa da legislação pelo Judiciário são medidas essenciais para coibir essa prática ilegal e proteger os interesses dos consumidores.
Rogerio Zarattini Chebabi
Advogado - OAB/SP 175.402
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