Canal Cinza - Falsidade Ideológica na interposição fraudulenta não é crime
Já tive e tenho inúmeros casos de canal cinza. Em praticamente a maioria dos casos que culminaram por pena de perdimento, a RFB entendeu ter havido interposição fraudulenta de terceiros, tipificando o crime como falsidade ideológica (art. 299, do CP).
Todavia, há uma corrente do Ministério Público Federal que entende que a prática de interposição fraudulenta em operações de importação, apesar de constituir infração tributária, já apurada na esfera administrativa do processo de perdimento, não se reveste de tipicidade penal, por diversas razões. Abaixo relato o entendimento do MPF, extraído de casos:
Interposição fraudulenta é a “situação fática em que determinado ente se encontra numa posição de ‘intermediário’ (importador ostensivo), visando ocultar outro agente (importador de fato ou encomendante predeterminado), causando prejuízo ao erário ou dificultando os controles administrativos das Aduanas”.
A interposição fraudulenta é presumida pela autoridade fiscal quando o importador ostensivo não comprova a origem dos recursos empregados nas operações de comércio exteriores realizadas (art. 23, § 2°, do Decreto-Lei nº 1.455/76). A fiscalização pode, então, presumir licitamente que a importação é financiada, na realidade, por um sujeito oculto, que seria o real destinatário dos bens introduzidos no país.
De outra forma, a interposição fraudulenta é real quando a autoridade alfandegaria identifica o beneficiário da importação, por exemplo quando a mercadoria se destina a encomendante predeterminado. Nessa hipótese, o importador ostensivo, formal, apenas cede seu nome ao real adquirente.
A legislação aduaneira prevê três modalidades de importação:
a) importação “por conta e risco próprios”, na qual o importador é quem negocia as mercadorias no exterior, recolhe os tributos devidos em razão de sua entrada no país e as revende no mercado nacional, sendo, assim, o único responsável por toda a operação;
b) importação “por conta e ordem de terceiro”, em que o importador promove, em seu nome, o desembaraço de mercadorias adquiridas por outra empresa (adquirente); nessa modalidade, a empresa importadora apenas presta um serviço à empresa adquirente, que e, na realidade, o importador de fato, devendo dispor de capacidade econômica para os custos da operação; e
c) importação “por encomenda”, que se diferencia da modalidade anterior em razão de exigir capacidade econômica tanto do importador de fato (encomendante) quanto do importador formal, que adquire mercadorias no exterior com recursos próprios e promove o despacho aduaneiro de importação a fim de revendê-las, posteriormente, à empresa encomendante.
O importador é estabelecimento equiparado à industrial.
A importação “por encomenda” é regulamentada pela IN/RFB nº 1.861/2018. Nela, o encomendante assume responsabilidade solidária pelo pagamento dos impostos (art. 32, parágrafo único, 'd', do Decreto-Lei nº 37/66). Mais relevante, o encomendante é equiparado à situação de estabelecimento industrial (art. 13 da Lei nº 11.281/2006).
Consequentemente, fica obrigado a recolher Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na saída dos produtos importados. Vale dizer que o importador indireto - encomendante ou adquirente por conta e ordem - equipara-se a estabelecimento industrial, devendo pagar IPI na revenda dos bens no mercado interno.
A interposição fraudulenta, portanto, é prática que, em tese, viabiliza a quebra da cadeia do IPI na saída das mercadorias do estabelecimento do sujeito oculto (importador indireto). Eventual sonegação tributária, nesse contexto, é apenas presumida pela Receita Federal do Brasil, salvo se houver provas concretas do não recolhimento do IPI nas operações subsequentes (que o perdimento dos bens impede que ocorra, não havendo crime, sequer tentado), verificadas dentro do território nacional. Feitas essas considerações, eis, de forma objetiva, as razões para que a persecução criminal não tenha prosseguimento:
Isto, porque, quanto ao crime tributário, a própria Alfândega nunca informa ter havido falta de recolhimento do tributo, vez que sempre é aplicada pena de perdimento das mercadorias importadas antes da revenda, sobre a qual incidiria o IPI.
A teor da Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal, “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1°, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Podemos até mesmo utilizar o seguinte entendimento do STJ:
DIREITO PENAL. ABSORÇÃO DOS CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA E DE USO DE DOCUMENTO FALSO PELO DE SONEGAÇÃO FISCAL.
O crime de sonegação fiscal absorve o de falsidade ideológica e o de uso de documento falso praticados posteriormente àquele unicamente para assegurar a evasão fiscal. Após evolução jurisprudencial, o STJ passou a considerar aplicável o princípio da consunção ou da absorção quando os crimes de uso de documento falso e falsidade ideológica - crimes meio - tiverem sido praticados para facilitar ou encobrir a falsa declaração, com vistas à efetivação do pretendido crime de sonegação fiscal - crime fim -, localizando-se na mesma linha de desdobramento causal de lesão ao bem jurídico, integrando, assim, o iter criminis do delito fim. Cabe ressalvar que, ainda que os crimes de uso de documento falso e falsidade ideológica sejam cometidos com o intuito de sonegar o tributo, a aplicação do princípio da consunção somente tem lugar nas hipóteses em que os crimes meio não extrapolem os limites da incidência do crime fim. Aplica-se, assim, mutatis mutandis, o comando da Súmula 17 do STJ (Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido). Precedentes citados: AgRg no REsp 1.366.714-MG, Quinta Turma, DJe 5/11/2013; AgRg no REsp 1.241.771-SC, Sexta Turma, DJe 3/10/2013. EREsp 1.154.361-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/2/2014.
Ademais, os créditos originados da lavratura de autos de infração contra as pessoas jurídicas não dizem respeito à conduta causadora de supressão ou redução de tributo, contribuição social ou qualquer acessório.
Não há, portanto, nestes casos de suposta ocultação de adquirente ou encomendante, indícios de elusão tributária decorrente de pagamento a menor de tributos aduaneiros, não se configurando, consequentemente, a circunstância elementar objetiva do tipo penal do art. 299 do CP (falsidade ideológica).
Vale ainda ressaltar que “a presunção de dano ao erário por suposta interposição fraudulenta de pessoa jurídica é suficiente para fins administrativos, mas não para caracterizar o crime de descaminho” (TRF2, EI nº 2006.50.01.012173-9, j. em 22/10/2015). De fato, as presunções válidas na esfera administrativo fiscal não podem ser automaticamente transpostas para a seara criminal, que opera, dentre outros, com o princípio da legalidade estrita ou tipicidade fechada.
Ainda, eventual delito de falsidade ideológica (poderia até mesmo ser documental ou uso de documento falso), poderia ter ocorrido com o único propósito de sonegar tributos, configurando-se como crime-meio para a prática de crime-fim (crime tributário ou descaminho, por exemplo), restando por ele absorvido. Inexistindo, tal qual inexiste, o crime-fim (sonegação do IPI), não se caracteriza por razões lógicas o crime-meio (falsidade ideológica).
Portanto, por ser atípico o crime de falsidade ideológica no caso narrado, é possível utilizar a tese para afastar não só o oferecimento da denúncia, como também tentar extinguir qualquer tentativa de Acordo de Não Persecução Penal pelo Ministério Público Federal.
Rogerio Zarattini Chebabi
Advogado - OAB/SP 175.402
rogerio@chebabi.net
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