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Triangulação Comercial Internacional sem Trânsito Físico na Jurisdição Intermediária

  • Foto do escritor: Rogerio Chebabi
    Rogerio Chebabi
  • 16 de out.
  • 9 min de leitura
Triangulação Comercial Internacional sem Trânsito Físico na Jurisdição Intermediária

--> Veja o glossário no final do artigo.

1. Introdução


Examina-se, em chave hipotética, a estruturação de operações de triangulação comercial na qual: (i) o fabricante situado no exterior (País A) vende mercadoria de alto valor; (ii) uma trading constituída em terceira jurisdição (País B) figura como exportadora faturista; e (iii) a carga segue diretamente do País A ao importador no Brasil, sem trânsito físico pelo País B.


A motivação empresarial é conhecida: respeitar vedações contratuais do fabricante à venda direta, otimizar o fluxo comercial e (legitimamente) gerir custos e riscos, sem incorrer em práticas abusivas.


O objetivo deste artigo é apresentar, com enfoque prático, os requisitos jurídicos e fiscais para a adequação do desenho, com destaque para: valoração aduaneira, preços de transferência, CFC (tributação de lucros no exterior), beneficiário final/AML, substância econômica e governança da trading. Propõe-se, ao final, uma arquitetura contratual preferencial (buy–sell) e um roteiro de conformidade.



2. Marco normativo essencial (Brasil)


2.1. Valoração aduaneira e documentação


A base de cálculo na importação é o valor aduaneiro apurado preferencialmente pelo método do valor de transação (Acordo de Valoração Aduaneira). A DI/DUIMP deve ser instruída com fatura comercial emitida e assinada pelo exportador (a trading, no caso buy–sell), packing list e conhecimento de transporte coerentes com o Incoterm utilizado. Em triangulações, impõe-se rigor na indicação de país de origem (o do processo produtivo), país de aquisição (jurisdição do exportador faturista) e país de procedência (de onde a mercadoria parte fisicamente).


2.2. Preços de transferência (TP)


Desde a Lei 14.596/2023 e regulamentação correlata, o Brasil adota o princípio arm’s length. Em transações com partes vinculadas no exterior (ou influenciadas por elas), a margem da trading deve refletir as funções, ativos e riscos por ela assumidos — tested party (elo mais simples da transação vinculada, escolhido como objeto da análise de comparabilidade em um estudo de preços de transferência) normalmente a própria trading, com uso de TNMM (retorno sobre vendas/custos) ou CUP quando disponível. A coerência TP × Aduana é essencial: a narrativa econômica que sustenta o preço de transferência deve se alinhar ao valor de transação declarado.


2.3. CFC – Controladas e coligadas no exterior


A legislação brasileira prevê a tributação, por competência, dos lucros de controladas no exterior, com ajustes e créditos do imposto pago fora. Em termos práticos, lucro em País B não “desaparece”: será atribuído no Brasil conforme as regras vigentes. Jurisdições de tributação favorecida ou regimes privilegiados acionam salvaguardas adicionais (p. ex., efeitos em TP, dedutibilidade e controles).


2.4. Beneficiário final, AML e sanções


A identificação do beneficiário final (UBO) é exigida tanto no CNPJ de entidades estrangeiras com relação jurídica no país como no relacionamento com bancos/corretoras (KYC/AML). Estruturas de interposição simulada (nominees sem substância decisória) expõem a riscos de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crimes contra a ordem tributária, além de prejudicar a bancabilidade do arranjo.


3. O problema jurídico do “exportador de papel”


No caso hipotético, há dois desenhos possíveis:


  • Modelo 1 — Buy–sell (preferencial): a trading compra do fabricante (País A) e revende ao importador brasileiro; assume risco comercial (crédito, performance), negocia condições, emite a fatura de exportação e consta como exportador.


  • Modelo 2 — Fee de intermediação (sensível): a trading não adquire a mercadoria; presta serviço documental/financeiro e cobra um fee; se emite a commercial invoice ao importador sem deter título ou risco, surge incoerência entre a cadeia jurídica e os documentos apresentados à Aduana.


Para fins de valoração aduaneira e compliance, o Modelo 1 confere robustez probatória: há cadeia real de compra e venda (chain of title), coerente com o Incoterm eleito.


O Modelo 2 pode ser lícito em hipóteses específicas, mas, se a trading “fatura sem poder”, convida o fiscal a desclassificar documentos, questionar o valor de transação e exigir provas de substância.


4. Substância econômica (jurisdição da trading)


“Substância” é a soma de decisões e funções que justificam a margem: direção local (reuniões e minutes), políticas comerciais, conta bancária, gestão de crédito e risco, contratos assinados pela trading e capacidade (própria ou terceirizada) de cumprir obrigações. Em diversas jurisdições — especialmente na União Europeia — a ausência de substância expõe a: (i) requalificação pela autoridade estrangeira; (ii) fragilidade para TP/aduana no Brasil; (iii) dificuldade de abertura/manutenção bancária.


5. Escolha da jurisdição (País B): critérios jurídicos


Sem citar países, adote-se a lógica decisória:


  1. Segurança jurídica e reputação internacional (Estado de Direito, estabilidade, previsibilidade).

  2. Rede de tratados e interação com o Brasil (mitigação de dupla tributação; aceitação em trade finance).

  3. Exigência de substância razoável e custo total de manutenção.

  4. Lista brasileira (jurisdição/regime favorecido) — preferir fora das listas para reduzir atritos.

  5. Bancabilidade/KYC (apetite de bancos, insurers, escrow).


Em geral, jurisdições europeias com tradição em comércio internacional e fora das listas brasileiras oferecem melhor equilíbrio entre compliance, bancabilidade e defensabilidade perante TP/Aduana. Jurisdições offshore de imposto zero podem parecer atraentes, mas a CFC brasileira neutraliza ganhos e eleva o risco reputacional e operacional.


6. Arquitetura contratual recomendada (Modelo 1)


Contrato A (fornecedor → trading). Compra e venda internacional com Incoterm coerente (por ex., FCA/FOB/CIP), transferência de risco claramente definida, preço e prazos, cláusula de no-circumvention (fabricante não vende direto aos clientes do território). Contrato B (trading → importador brasileiro). Venda internacional (CFR/CIF/CPT/CIP), fatura comercial assinada pela trading, reserva de domínio até o pagamento, garantias e service levels. Acordo intragrupo (quando houver distribuidor local): policy de preços (arm’s length), escopo de serviços, SLAs, auditoria e cláusulas anticorrupção/sanções.


Documentos do embarque (Israel→Brasil no exemplo genérico):


  • Commercial invoice (trading → importador);

  • Packing list (do fabricante);

  • Conhecimento de transporte (embarque direto País A → Brasil);

  • Certificados aplicáveis;

  • Comprovantes de pagamento (SWIFT/LC).


7. TP × Aduana: alinhar para não ajustar


  • TP (arm’s length): a trading, como comprador-revendedor de risco limitado, tende a operar com margem estreita (p. ex., retorno sobre vendas em faixa de poucos pontos percentuais, a calibrar por benchmarking).

  • Aduana (valor de transação): a fatura da trading ao Brasil deve refletir a realidade contratual/financeira. Misalignment (p. ex., margem incompatível com funções/risco) acende alertas e pode levar a ajustes.


Recomenda-se documentação anual (Master/Local File) e SOP aduaneiro (checklist de DI/DUIMP) para provar a coerência.


8. CFC e consolidação: o mito do “lucro que fica fora”


Se a sociedade brasileira controla a trading, os lucros desta são, como regra, atribuídos no Brasil por competência, com créditos do imposto pago em País B (quando houver). Deixar recursos “lá fora” pode fazer sentido financeiro (reinvestimento, hedge cambial), mas não elimina a incidência no Brasil. Planeja-se margem, CIT em País B, créditos, fluxo de dividendos e eventual repatriação (com IOF-Câmbio conforme a natureza), sempre documentando.


9. Beneficiário final, AML e o veto ao “oculto”


Transparência de UBO (UBO (Ultimate Beneficial Owner) — em português, Beneficiário Final — é a pessoa física que controla efetivamente ou se beneficia economicamente de uma empresa, ainda que não figure formalmente em seus documentos societários) é condição de bancabilidade e de conformidade. “Ocultar” sócio por interposição artificial afronta KYC/AML, pode caracterizar dissimulação e, no Brasil, dialoga perigosamente com tipos penais e infrações administrativas. O caminho ortodoxo — registro de UBO, board ativo, minutes, policies — reduz riscos e acelera operações.


10. Riscos típicos e mitigação


10.1. Riscos


  • Aduaneiros: desclassificação de documentos, questionamento do valor de transação, divergência origem/aquisição/procedência, “exportador de papel”.

  • TP: margem fora de arm’s length, método inadequado, misalignment com Aduana.

  • CFC: aumento de carga no Brasil quando não há CIT em País B; listas elevam escrutínio.

  • AML/KYC: bloqueios bancários e atrasos por documentação frágil.

  • Penais/regulatórios: simulação, ocultação de beneficiário, falsidade documental.

  • Contratuais: violação de exclusividade/no-circumvention; lacunas em garantias e suporte.


10.2. Mitigação


  • Escolha de jurisdição com segurança, tratados e bancabilidade; evitar listas de “baixa tributação”.

  • Modelo buy–sell com substância mínima (diretores locais, conta bancária, endereço corporativo, board minutes, políticas).

  • Policy de TP escrita, com faixa de margem compatível e benchmark anual; ajustes de fechamento quando cabíveis.

  • SOP aduaneiro: fatura correta e assinada, BL/AWB coerente, comprovação de pagamentos, mapa de origem/aquisição/procedência.

  • Pacote AML/KYC: UBO declarado, screening de sanções, due diligence de contrapartes.

  • Matriz CFC: simular cenários (margem, CIT em País B, créditos no Brasil).

  • Contratos back-to-back com cláusulas de exclusividade, no-circumvention e arbitragem internacional.


11. Fluxo cambial e repatriação


A permanência de recursos no exterior é lícita, desde que declarada/contabilizada (inclusive a CFC). Na repatriação, distinguir dividendos (em regra, sem nova tributação se já houve atribuição via CFC, conforme a lei vigente) de serviços (que podem atrair ISS, IRRF e PIS/COFINS-Importação, conforme a natureza). O IOF-Câmbio aplica-se conforme o enquadramento da operação. Padronizar fichas de câmbio e contratos reduz ruído bancário.


12. Conclusão


No caso hipotético, a estrutura juridicamente mais defensável é a trading buy–sell em jurisdição com segurança institucional, boa reputação, rede de tratados e exigência razoável de substância, fora das listas brasileiras de “baixa tributação”.


O projeto deve ser ancorado em: (i) contratos back-to-back consistentes; (ii) policy de TP arm’s length; (iii) SOP de valoração/aduana; (iv) governança e UBO transparentes; e (v) matriz CFC para a visão consolidada Brasil+exterior.


O Direito não demoniza a eficiência; apenas exige que ela corresponda à realidade econômica. Substância + documentação é a fórmula tradicional que ainda funciona — e é justamente por isso que continua sendo a melhor.


Apêndice – Checklist operacional (resumo)


Antes de fechar país/jurisdição

  • Critérios: listas brasileiras, tratados, substância, bancos, custos.

  • Provider local avaliado (KYC, honorários, prazos).


Contratos

  • Fornecedor→Trading (buy–sell), Trading→Importador (Incoterms, risco, garantias).

  • Acordo intragrupo (serviços, TP, SLAs).

  • Cláusulas anticorrupção/sanções e no-circumvention.


TP & Aduana

  • Master/Local File, benchmark, tested party e método.

  • SOP DI/DUIMP; origem/aquisição/procedência; fatura assinada; BL/AWB coerente.


Governança

  • Diretores locais, endereço corporativo, conta bancária, board minutes.

  • Registro de UBO, políticas AML/KYC e screening de sanções.


Fiscal/Contábil Brasil

  • Mapa de CFC (créditos externos, efeitos de caixa).

  • ECF e, quando aplicável, declarações de capitais no exterior.

  • Política de repatriação (dividendos vs. serviços) e IOF-Câmbio.


Rogerio Zarattini Chebabi

OAB/SP 175.402


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Glossário de Termos Técnicos


1. KYC (Know Your Customer) - Procedimento obrigatório de identificação e verificação da identidade de clientes, adotado por instituições financeiras e empresas para prevenir fraudes, lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. No contexto empresarial, inclui coleta de documentos societários, identificação de beneficiários finais e análise de histórico financeiro.


2. AML (Anti-Money Laundering) - Conjunto de regras e práticas de prevenção à lavagem de dinheiro, exigindo monitoramento de transações suspeitas, registro de operações e comunicação às autoridades competentes. O AML é o complemento institucional do KYC, e ambos formam o eixo central de governança em operações internacionais.


3. CFC (Controlled Foreign Corporation) - Regra tributária segundo a qual lucros de controladas no exterior são tributados no país da controladora, mesmo que não sejam distribuídos. No Brasil, as regras de CFC obrigam empresas nacionais a reconhecer e tributar lucros de sociedades estrangeiras sob seu controle direto ou indireto.


4. TP (Transfer Pricing) - Sistema de Preços de Transferência que regula as transações entre partes vinculadas no exterior, para garantir que ocorram em condições de mercado (arm’s length). Visa impedir que empresas multinacionais transfiram lucros a países de baixa tributação mediante manipulação de preços entre empresas do mesmo grupo.


5. Arm’s Length Principle - Princípio fundamental de preços de transferência, segundo o qual as transações entre partes relacionadas devem ocorrer nas mesmas condições que seriam praticadas entre partes independentes em mercado aberto.


6. DUIMP (Declaração Única de Importação) - Documento eletrônico que substitui a antiga Declaração de Importação (DI), centralizando informações aduaneiras, fiscais, comerciais e logísticas. É utilizado no Portal Único de Comércio Exterior (Siscomex).


7. Incoterm (International Commercial Terms) - Conjunto de regras internacionais padronizadas pela ICC (Câmara de Comércio Internacional) que definem as obrigações de comprador e vendedor quanto a transporte, seguro, desembaraço e riscos. Exemplos: FOB, CFR, CIF, CIP, DAP.


8. Buy–Sell Model (Modelo de Compra e Revenda) - Estrutura contratual na qual a trading compra mercadorias de um fabricante e as revende ao importador, assumindo risco e propriedade sobre os bens. É o modelo mais seguro juridicamente para triangulações internacionais, pois cria uma cadeia legítima de compra e venda (chain of title).


9. Fee Model (Modelo de Intermediação ou Serviço) - Arranjo no qual a trading não adquire a mercadoria, apenas intermedeia a operação, cobrando um fee (taxa). Embora lícito, é mais vulnerável sob o ponto de vista aduaneiro e fiscal, pois pode ser considerado “exportação ficta” se a trading emite faturas sem deter o direito de dispor sobre as mercadorias.


10. Chain of Title - Expressão do direito comercial que designa a cadeia jurídica de titularidade sobre um bem. No comércio internacional, refere-se à sequência ininterrupta de transferências de propriedade (do fabricante → trading → comprador final).


11. Beneficiário Final (UBO – Ultimate Beneficial Owner) - Pessoa física que detém o controle real ou o benefício econômico de uma entidade jurídica, ainda que por meio de interpostas pessoas. Sua identificação é obrigatória perante bancos, Receita Federal e órgãos de prevenção à lavagem de dinheiro.


12. Substância Econômica (Economic Substance) - Requisito de que uma empresa tenha atividade real na jurisdição em que está registrada — diretores locais, endereço, conta bancária, decisões próprias — e não exista apenas para fins fiscais. Ausência de substância pode levar à desconsideração da pessoa jurídica ou requalificação de receitas.


13. Jurisdição de Tributação Favorecida - País ou território com imposto de renda corporativo nulo ou reduzido, ou que imponha sigilo sobre propriedade societária e operações. O Brasil mantém lista oficial (Portaria MF nº 488/2014) com efeitos fiscais adversos (regras de CFC e TP mais rigorosas).


14. CBE (Capitais Brasileiros no Exterior) - Declaração obrigatória ao Banco Central do Brasil para pessoas físicas e jurídicas com ativos externos acima dos limites estabelecidos (US$ 1 milhão anual, US$ 100 milhões trimestral).


15. IOF-Câmbio (Imposto sobre Operações Financeiras – Câmbio) - Tributo incidente sobre operações de câmbio. Em transferências de recursos próprios, a alíquota costuma ser de 0,38%, mas pode variar conforme a natureza (investimentos, empréstimos, remessas).


16. Master File e Local File - Documentos exigidos pelas normas de Transfer Pricing da OCDE, detalhando as políticas globais de preços de transferência do grupo (Master File) e as operações locais específicas (Local File). Servem como prova de conformidade em auditorias.


17. SOP (Standard Operating Procedure) - Procedimento Operacional Padrão. Documento interno que descreve rotinas, controles e verificações necessárias para garantir que as operações estejam em conformidade (ex.: checklist de DI, documentação aduaneira e compliance).


18. No-Circumvention Clause - Cláusula contratual que proíbe uma das partes de contornar a intermediação e negociar diretamente com o fornecedor ou comprador original, garantindo proteção comercial ao intermediário.


19. Compliance Pack - Conjunto de documentos e políticas que demonstram o compromisso de uma empresa com a conformidade legal e regulatória — inclui KYC/AML, sanções internacionais, governança, auditorias internas e códigos de conduta.


20. Trading “Paper Exporter” (Exportador de Papel) - Expressão informal para designar uma empresa que emite faturas comerciais sem efetiva transferência de propriedade ou risco, sendo mera fachada documental. Tal prática é vulnerável à desclassificação pela Receita Federal e a questionamentos sobre fraude ou simulação.

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