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A demurrage como cláusula penal: STJ diz que cobrança não pode ultrapassar o valor do próprio contêiner

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    Rogerio Chebabi
  • 1 de out.
  • 4 min de leitura
A demurrage como cláusula penal:  STJ diz que cobrança não pode  ultrapassar o valor do próprio contêiner

1. Introdução


A sobre-estadia de contêineres, ou demurrage, consolidou-se como prática corriqueira nas operações de transporte marítimo internacional. A lógica do instituto é clara: caso o contêiner não seja devolvido no prazo de utilização gratuita (free time), convencionado entre as partes, o consignatário deve arcar com valores diários previamente fixados em contrato.


Durante muito tempo, a jurisprudência nacional compreendia tais valores como uma indenização pré-fixada, afastando qualquer possibilidade de revisão judicial. Com isso, o simples atraso já justificava a cobrança integral, ainda que os valores atingissem cifras superiores ao custo de aquisição de um novo equipamento.


2. O precedente do STJ e a mudança de paradigma


No julgamento do Recurso Especial nº 1.577.138/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, alterou de modo significativo essa orientação. O Tribunal reconheceu que a cobrança de sobre-estadia pelas companhias de navegação, prevista em cláusula contratual com valor fixado, tem natureza de cláusula penal e deve ser limitada ao valor do próprio contêiner, salvo prova de danos materiais adicionais, sob pena de gerar onerosidade excessiva e desequilíbrio contratual.


Essa passagem é a síntese da tese jurídica firmada pelo STJ, representando uma inflexão em relação ao entendimento tradicional. A demurrage, portanto, não pode mais ser vista apenas como indenização presumida, mas sim como pena convencional sujeita à moderação judicial.


A Ementa ficou assim:


EMENTA DIREITO MARÍTIMO E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE SOBRE-ESTADIAS DE CONTÊINERES. DEMURRAGE . PRETENSÃO FORMULADA COM BASE NO CONTRATO. NATUREZA JURÍDICA: INDENIZAÇÃO DE DANO MATERIAL (CC, ARTS. 402 E 403) OU CLÁUSULA PENAL (CC, ARTS. 408 A 416). LIMITAÇÃO DA PENALIDADE. POSSIBILIDADE. VALOR DO OBJETO CONTRATADO (CC, ART. 412). MODICIDADE DO VALOR DA COBRANÇA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. Tem-se ação de cobrança ajuizada por companhia de navegação (transporte marítimo), com o objetivo de obter o pagamento de valores relativos à sobreestadia de contêineres (demurrage), com base em termos contratuais preestabelecidos, independentemente da comprovação de efetivos prejuízos por danos materiais. Fundamenta o pedido na violação de obrigações contratuais relacionadas ao prazo de devolução dos contêineres. 2. No ordenamento jurídico brasileiro, o dano material exige prova de sua ocorrência fática, porque as perdas e danos são o que efetivamente se perdeu e o que razoavelmente (ou provavelmente) se deixou de ganhar, segundo definição dada pelos arts. 402 e 403 Código Civil. Não há, data venia, espaço para presunção de dano material, pois este, diferentemente do dano de natureza extrapatrimonial, a ser sempre reparado por estimativa, deve ser indenizado com precisão pelo ofensor. Logo, deve o dano material ser comprovado em sua existência e valor, como pressuposto para que seja a vítima devidamente indenizada, isto é, recolocada indene. 3. Então, há duas questões em discussão: (I) definir se a cobrança pela sobreestadia de contêineres possui natureza de indenização ou de cláusula penal; e (II) determinar se o valor da sobre-estadia pode ser reduzido, em observância ao princípio da modicidade e à função social dos contratos. 4. Embora a jurisprudência majoritária reconheça a natureza indenizatória prefixada da sobre-estadia de contêineres, afasta contraditoriamente a caracterização desta como cláusula penal. A cobrança de demurrage pelas companhias de navegação decorre de cláusula contratual em valor preestabelecido, caracterizando-se como cláusula penal, disciplinada pelos arts. 408 a 416 do Código Civil. 5. A cláusula penal permite a redução do valor pactuado, quando seja manifestamente excessivo ou desproporcional ao prejuízo sofrido, em observância ao princípio da modicidade (CC, art. 413). 6. A quantia cobrada a título de sobre-estadia deve ser limitada ao valor equivalente ao do próprio contêiner, ressalvadas as hipóteses de efetiva comprovação de outros danos materiais adicionais a serem compensados ou indenizados, sob pena de onerosidade excessiva e de desequilíbrio contratual. 7. No presente caso, o valor cobrado a título de demurrage não é elevado, alcançando um total de pouco mais de R$ 22.000,00, pela utilização de 21 contêineres, montante inferior ao preço de um contêiner de 20 pés novo, mostrando-se compatível com os danos alegados e com a indenização contratual prefixada, ou seja, com a cláusula penal. 8. Recurso especial desprovido.




3. Fundamentos e princípios aplicáveis


O precedente está alicerçado em pilares fundamentais do Direito Contratual:


  • Modicidade e proporcionalidade: evita que o valor se torne desarrazoado em comparação ao bem tutelado;

  • Função social do contrato: impede que a cláusula seja utilizada como instrumento de enriquecimento sem causa;

  • Equilíbrio contratual: assegura que as partes mantenham condições simétricas de negociação e cumprimento do ajuste.


Assim, o reconhecimento da natureza de cláusula penal permite que o Judiciário atue como regulador de abusos, impondo limites razoáveis e compatíveis com a realidade econômica do transporte marítimo.


4. Impactos práticos da decisão


A nova interpretação tem repercussões diretas sobre importadores, agentes de carga e armadores:


  1. Redução judicial de cobranças abusivas: usuários podem pleitear a moderação de valores que superem o custo do contêiner.

  2. Segurança jurídica: contratos passam a ter parâmetros objetivos para definição de penalidades.

  3. Poder de negociação: a jurisprudência fortalece a posição dos importadores e operadores logísticos em eventual discussão com companhias de navegação.

  4. Reequilíbrio econômico: evita-se que uma obrigação acessória desvirtue-se em fonte de lucro desmedido para uma das partes.


5. Conclusão


A reinterpretação do STJ representa um marco no tratamento jurídico da demurrage no Brasil. Ao fixar que a cobrança se equipara a uma cláusula penal contratual, limitando-a ao valor do próprio contêiner — salvo prova de danos maiores —, o Tribunal não apenas atualiza o instituto às exigências de justiça contratual, mas também impõe freios necessários contra a onerosidade excessiva.


Com isso, preserva-se a legitimidade do instituto, garantindo compensação justa ao armador sem abrir espaço para distorções econômicas ou práticas abusivas, reforçando, em última análise, a segurança jurídica das relações de comércio exterior.


Rogerio Zarattini Chebabi

OAB/SP 175.402

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