A Falta de Transparência nas Cotas de Importação: um Problema Estrutural e Recorrente no Comércio Exterior Brasileiro
- Rogerio Chebabi

- 30 de out.
- 4 min de leitura

1. Introdução
O regime de cotas tarifárias de importação tem por objetivo equilibrar a política comercial brasileira, permitindo a entrada de determinados produtos com redução temporária da alíquota do Imposto de Importação (II), quando a produção nacional é insuficiente para atender à demanda.
O instrumento, essencialmente legítimo, visa garantir competitividade, previsibilidade e estabilidade às cadeias produtivas.
Todavia, na prática, o sistema de cotas — especialmente no âmbito das Resoluções GECEX/CAMEX e das Portarias SECEX nº 249/2023 e nº 405/2025 — tem se mostrado opaco e desatualizado, dificultando o planejamento empresarial e expondo os operadores de comércio exterior a riscos tributários e logísticos significativos.
Casos recorrentes têm demonstrado que as cotas se esgotam em poucos minutos após a abertura quadrimestral, sem que exista meio público de auditoria dos registros cronológicos, nem atualização tempestiva das tabelas oficiais de acompanhamento.
2. A sistemática das cotas e o princípio da transparência administrativa
A Portaria SECEX nº 405/2025 prevê, em seu art. 4º, inciso I, que o exame dos pedidos de LI será realizado por ordem de registro no Siscomex.
Esse critério, aparentemente objetivo, ganha contornos problemáticos quando aplicado em ambiente tecnologicamente desigual — onde grandes grupos econômicos, com sistemas automatizados, conseguem registrar LIs nos primeiros segundos após a virada do quadrimestre, enquanto operadores médios e pequenos, que agem manualmente, ficam excluídos do acesso à cota.
Eventual redistribuição de saldo decorrente de estornos, cancelamentos ou vencimentos deverá observar a mesma ordem cronológica, assegurando publicidade e transparência. No entanto, a prática administrativa revela que tais informações permanecem inacessíveis aos importadores, sendo processadas internamente pelo DECEX/COIMP, sem divulgação pública do histórico de consumo e estorno.
3. O problema recorrente: esgotamento imediato e falta de publicidade
Hipoteticamente — mas com frequência notória —, imagine-se um importador que, às 00h20 do dia de abertura do quadrimestre, registre sua LI para algumas toneladas de determinado insumo industrial. O sistema, poucos minutos depois, indeferirá o pedido sob o argumento de “cota global esgotada”, ainda que a planilha pública do DECEX, divulgada em https://www.gov.br/siscomex/pt-br/informacoes/importacao/cotas-de-importacao, mostre saldo disponível.
Ao verificar, constata-se que a planilha oficial de Acompanhamento das Cotas de Importação, atualizada apenas até 09/10/2025, ainda refletia dados do quadrimestre anterior (24/06 a 23/10/2025). Assim, o importador se vê diante de uma contradição: o sistema interno indica esgotamento total, mas o canal público de controle permanece desatualizado há mais de duas semanas.
Essa defasagem compromete a transparência e a segurança jurídica do regime, pois impede que o operador saiba, de modo verificável, quando e por quem o saldo foi consumido.
A Administração Pública deve observar os princípios da publicidade, moralidade e eficiência, o que inclui o dever de garantir acesso tempestivo às informações de interesse coletivo. No contexto das cotas, essa obrigação assume especial relevância, dado o impacto financeiro das operações e o curto prazo para registro das LIs.
4. O dever de transparência e o direito à informação
O art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, assegura a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular ou coletivo, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança do Estado.
A Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) reforça esse comando, impondo aos órgãos da administração o dever de disponibilizar proativamente dados de interesse público — o que abrange, indubitavelmente, informações sobre a execução de cotas tarifárias, por envolver recursos e privilégios econômicos concedidos pelo Estado.
O fato de as tabelas oficiais serem meramente informativas e atualizadas de forma esparsa não exime a Administração do dever de transparência ativa. A ausência de atualização tempestiva cria assimetria informacional, distorcendo o princípio da isonomia concorrencial entre os importadores.
5. Consequências práticas e insegurança jurídica
A falta de transparência produz efeitos concretos e onerosos:
Perda de benefício fiscal — Em exemplo, o indeferimento por esgotamento implica o pagamento integral do II (25%), em vez da alíquota reduzida (10,8%), sem que o importador possa antecipadamente saber que a cota já havia se esgotado;
Impossibilidade de planejamento logístico — cargas já prontas e pagas permanecem paradas por ausência de LI dentro da cota;
Judicialização crescente — mandados de segurança e ações declaratórias têm sido propostos não para “furar fila”, mas para obter transparência, acesso aos logs de distribuição e à fila de registros no Siscomex;
Desigualdade competitiva — empresas que dispõem de sistemas automatizados de registro capturam a totalidade das cotas em segundos, enquanto pequenas e médias empresas ficam sistematicamente excluídas.
6. O controle social e a necessidade de reformulação
O modelo de divulgação atual — planilhas em Excel publicadas esporadicamente — é insuficiente e anacrônico diante da complexidade do comércio exterior contemporâneo. Um verdadeiro controle social das cotas exigiria:
atualização diária ou em tempo real dos saldos consumidos e estornados;
divulgação do histórico de deferimentos, com número da LI, data e volume deferido (preservando sigilo comercial);
painel público de acompanhamento, permitindo que qualquer interessado visualize o esgotamento e a redistribuição das cotas;
comunicação eletrônica automatizada aos importadores incluídos em fila de redistribuição.
Essas medidas não apenas atenderiam ao dever constitucional de publicidade, mas também reduziriam litígios e incertezas.
7. Considerações finais
O regime de cotas tarifárias, embora fundamental para o equilíbrio industrial e comercial do país, sofre de um déficit crônico de transparência e previsibilidade. A recorrência de indeferimentos instantâneos — em alguns casos com esgotamento “em 22 minutos” — revela uma distorção sistêmica: a aplicação de um critério cronológico sem transparência pública e sem instrumentos eficazes de controle.
É imprescindível que o MDIC/SECEX reformule o sistema de divulgação e monitoramento das cotas, implementando atualização automatizada, relatórios públicos e rastreabilidade cronológica dos deferimentos.
A transparência não é uma mera gentileza administrativa — é uma exigência constitucional, um elemento essencial da boa governança e um direito dos operadores de comércio exterior.
Enquanto isso não ocorre, continuará a se repetir o cenário paradoxal em que o importador, mesmo agindo de boa-fé e dentro do prazo, descobre que o Estado esgotou a cota antes que o próprio Estado soubesse disso oficialmente.
Rogério Zarattini Chebabi
Advogado OAB/SP 175.402


























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