Conceito de Autopeça e a Incidência Monofásica de PIS/COFINS no Setor Automotivo
- Rogerio Chebabi
- há 3 dias
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1. Introdução
Em contexto hipotético/exemplificativo, imagine-se que uma empresa importadora de equipamentos industriais pesados foi autuada pela Receita Federal do Brasil sob a alegação de recolhimento incorreto de PIS e COFINS-Importação. O motivo: teria aplicado alíquotas inferiores às previstas para “autopeças” nos termos da Lei nº 10.485/2002 e da Lei nº 10.865/2004.
O cerne da controvérsia repousa sobre a definição jurídica do termo “autopeça” e a consequente aplicabilidade do regime monofásico das contribuições no setor automotivo. Trata-se de um tema que transcende a semântica legal e exige interpretação material, técnico-funcional e teleológica da norma.
2. O Regime Monofásico e sua Lógica Setorial
A Lei nº 10.485/2002 instituiu um modelo de incidência concentrada (monofásica) para o PIS e a COFINS no setor automotivo. Nesse regime, o ônus tributário é concentrado na etapa de fabricação ou importação, com alíquota zero nas fases subsequentes (atacado e varejo).
O artigo 3º dessa lei sujeita os fabricantes e importadores às alíquotas específicas apenas quanto às autopeças listadas nos Anexos I e II, que, por sua vez, vinculam-se aos veículos e máquinas descritos no artigo 1º.
A lógica do sistema é setorial: busca-se evitar a cumulatividade dentro da cadeia automotiva, mas apenas enquanto o bem integra ou se destina a veículos automotores terrestres.
3. O Conceito Jurídico-Material de “Autopeça”
A Receita Federal consolidou, por meio de atos normativos vinculantes, o entendimento de que o termo “autopeça” não possui caráter meramente nominativo, mas material e funcional.
A Solução de Consulta Interna COSIT nº 1/2019, reiterada pela Solução de Consulta COSIT nº 195/2021 e anteriormente antecipada pela Solução de Consulta COSIT nº 55/2018, fixou os seguintes critérios:
“Autopeça é o produto que, por suas dimensões, finalidades e demais características, possa ser potencialmente utilizado na produção das máquinas e veículos elencados no art. 1º da Lei nº 10.485/2002 ou na fabricação de outras autopeças listadas nos Anexos I e II.”
O ponto crucial é o teste de potencialidade. Assim, se for possível excluir a aptidão técnica do produto para o uso no setor automotivo terrestre, não há que se falar em aplicação do regime monofásico — ainda que o código NCM do produto conste nos anexos da lei.
Portanto, o enquadramento como “autopeça” depende de critérios técnicos objetivos, como dimensões, interfaces de acoplamento, padrões de torque, normas de projeto e finalidade construtiva.
4. O NCM como Indício, e Não como Presunção Absoluta
O código NCM presente nos Anexos da Lei nº 10.485/2002 serve apenas como indício classificatório, não sendo suficiente para determinar a incidência do regime monofásico.
O legislador não criou um sistema de tributação baseado na nomenclatura fiscal pura, mas num vínculo funcional com o setor automotivo terrestre. Essa leitura foi reforçada pelas soluções de consulta, que afastam a interpretação literal em favor de um critério teleológico e técnico-material.
Em linguagem clássica, o NCM indicia, mas não conclui. Cabe ao contribuinte demonstrar, quando cabível, que o produto, embora enquadrado em NCM de autopeça, não tem potencialidade de uso automotivo terrestre, mas destina-se a máquinas de mineração, construção, agricultura ou outros segmentos industriais.
5. A Simetria de Aplicação: Fabricantes e Importadores
O regime monofásico aplica-se igualmente a fabricantes e importadores. O artigo 3º da Lei nº 10.485/2002 é claro ao abranger ambos, e os Anexos I e II são comuns às duas categorias. Assim, o conceito material de “autopeça” é uno e indivisível: não há uma definição para fabricantes e outra para importadores.
Essa simetria é reafirmada pela Solução de Consulta COSIT nº 195/2021, que estende o mesmo raciocínio à Cofins-Importação, prevista na Lei nº 10.865/2004 (§9º e §9º-A do art. 8º).
Logo, o importador somente será tributado como “autopeça” se o bem importado tiver, por suas características, potencialidade de uso no setor automotivo terrestre. Caso contrário, aplica-se o regime geral, e não as alíquotas específicas da monofasia.
6. Critérios Técnicos do “Teste de Potencialidade”
As Soluções de Consulta da RFB indicam que o “teste de potencialidade” envolve a análise de:
Finalidade e projeto: se o produto é concebido para integrar estruturalmente um veículo ou máquina do art. 1º da Lei nº 10.485/2002;
Compatibilidade geométrica e funcional: interfaces de acoplamento, torque, pressão, rotação, temperatura e dimensões;
Normas técnicas aplicáveis: padrões ISO, ABNT, SAE ou outros, típicos do setor automotivo;
Ambiente de operação: se o item é projetado para uso em veículos rodoviários ou em maquinário de infraestrutura, mineração, agrícola ou industrial.
Somente quando tais parâmetros indicam vocação automotiva terrestre, o bem pode ser tratado juridicamente como “autopeça”.
7. O Caso Hipotético: Autopeças ou Componentes de Máquinas Pesadas?
No caso hipotético, os bens autuados incluíam cilindros hidráulicos, buchas, engrenagens, válvulas, pistões de freio e outros componentes utilizados em escavadeiras, caminhões fora de estrada e equipamentos de mineração.
Trata-se de itens de grande porte, com pressões e dimensões incompatíveis com veículos automotivos terrestres. Assim, exclui-se a potencialidade de uso no setor automotivo.
A aplicação do art. 3º da Lei nº 10.485/2002, portanto, revela-se indevida, pois o bem não se enquadra materialmente como “autopeça”, mas como peça de maquinário industrial não rodoviário.
8. Conclusão
O conceito de autopeça, para fins de incidência monofásica do PIS/COFINS, é material, funcional e técnico, e não meramente classificatório.
A jurisprudência administrativa consolidada pela própria Receita Federal — por meio das Soluções COSIT nº 1/2019, nº 55/2018 e nº 195/2021 — impõe a análise da potencialidade de uso automotivo terrestre como critério essencial de enquadramento.
O NCM é apenas o ponto de partida, jamais o destino da interpretação.
Em situações em que a natureza do bem revela vocação industrial, mineradora ou de infraestrutura pesada, afasta-se a incidência do art. 3º da Lei nº 10.485/2002 e, consequentemente, o regime monofásico das contribuições.
O Direito Tributário, ao fim e ao cabo, não se satisfaz com etiquetas fiscais; exige a coerência entre forma e substância — entre o nome e a função.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
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