Programa "Receita de Consenso" - Segregador, ilegal e inconstitucional
Introdução
Em 04/11/24, a Receita Federal anunciou a criação do Programa "Receita de Consenso":
O programa está regulamentado pela Portaria RFB 467, de 30 de setembro de 2024, e somente contribuintes incluídos na classificação máxima em programas de conformidade da RFB poderão utilizá-lo.
Para o Consenso, um conflito tributário com a Receita Federal é aquele que surge durante a fiscalização ou antes dela, especialmente quando se apresenta um planejamento tributário ou outro tipo de negócio que pode gerar diferentes interpretações.
O Receita de Consenso pode acontecer nas seguintes situações:
durante um procedimento fiscal, se houver divergência sobre a interpretação inicial da autoridade fiscal em relação a um fato tributário ou aduaneiro; ou
na falta de um procedimento fiscal, para esclarecer as consequências tributárias e aduaneiras de um determinado negócio jurídico realizado.
Após a solicitação de consensualidade ser aceita, haverá uma audiência gravada, com representantes da Receita Federal e do contribuinte.
O Receita de Consenso surgiu como uma iniciativa da Receita Federal para facilitar a resolução de conflitos tributários, buscando evitar judicializações e promover o diálogo entre o fisco e os contribuintes. Contudo, seu acesso é restrito a grandes contribuintes que possuam certificação nos programas OEA, CONFIA e, futuramente, o Sintonia.
Essa limitação levanta questionamentos relevantes sobre sua legalidade e constitucionalidade. Este artigo explora os fundamentos constitucionais e legais que tornam a restrição problemática, bem como sugere alternativas para democratizar o acesso a esse instrumento.
1. Fundamentos Constitucionais e Legais
1.1. Princípio da Isonomia (Art. 5º, Caput, CF)
O princípio da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A restrição de acesso ao Receita de Consenso apenas aos contribuintes certificados privilegia grandes empresas, criando um tratamento diferenciado sem justificativa razoável. Pequenas e médias empresas, que poderiam se beneficiar do diálogo para evitar litígios e esclarecer questões fiscais, são excluídas, ferindo o princípio da igualdade.
1.2. Princípio da Impessoalidade Administrativa (Art. 37, CF)
O princípio da impessoalidade determina que a administração pública deve tratar todos os contribuintes de forma imparcial. Ao privilegiar contribuintes certificados, o Receita de Consenso cria um canal especial de comunicação para grandes empresas, deixando as demais sem acesso. Essa situação configura uma quebra da impessoalidade administrativa, favorecendo um grupo seleto de contribuintes sem uma justificativa técnica robusta.
1.3. Direito de Petição (Art. 5º, XXXIV, “a”, CF)
O direito de petição aos órgãos públicos é uma garantia fundamental que permite ao contribuinte buscar esclarecimentos e defender seus direitos junto à administração. Embora o Receita de Consenso seja um programa específico, ele representa um canal importante de comunicação com o fisco. Restringir o acesso a esse canal apenas aos certificados configura uma limitação excessiva ao direito de petição, afetando o direito dos contribuintes de menor porte a uma comunicação efetiva com a Receita Federal.
1.4. Princípio da Eficiência (Art. 37, CF)
O princípio da eficiência exige que a administração pública atue de forma a garantir o melhor uso dos recursos, buscando prevenir conflitos e otimizar a gestão tributária. A exclusão dos pequenos contribuintes do Receita de Consenso contraria esse princípio, pois reduz o potencial do programa para prevenir litígios. Sem acesso ao diálogo prévio com a Receita, pequenas e médias empresas têm maior probabilidade de enfrentar autuações e processos, aumentando a judicialização de conflitos.
1.5. Livre Iniciativa e Livre Concorrência (Art. 170, CF)
A restrição ao Receita de Consenso cria uma desvantagem competitiva para empresas menores. Grandes empresas possuem um canal privilegiado para resolver questões tributárias e aduaneiras, enquanto as pequenas e médias empresas, sem acesso ao programa, enfrentam um custo maior de conformidade fiscal. Isso afeta a livre concorrência e a livre iniciativa, princípios fundamentais para o desenvolvimento econômico equilibrado.
1.6. Princípio da Razoabilidade
Os requisitos para certificação nos programas OEA e CONFIA são altamente restritivos. No caso do CONFIA, exige-se receita bruta anual de pelo menos R$ 2 bilhões, excluindo a maioria esmagadora das empresas brasileiras. Esse critério torna a restrição desproporcional e pouco razoável, impedindo que a grande maioria dos contribuintes possa acessar o Receita de Consenso. Isso exclui mais de 99% das empresas brasileiras do acesso ao programa.
1.7. Princípio da Legalidade
A restrição ao Receita de Consenso é estabelecida por meio de atos infralegais, como portarias e instruções normativas, sem respaldo em lei formal. Considerando que essa limitação impacta diretamente o direito de acesso ao diálogo com a Receita Federal, questiona-se se tal limitação poderia ser imposta sem uma lei em sentido formal. A ausência de lei formal pode configurar uma violação ao princípio da legalidade administrativa.
2. Análise Crítica da Restrição
2.1. Problemas de Acesso ao Fisco
A limitação ao Receita de Consenso prejudica justamente os contribuintes que mais precisam de acesso ao diálogo com o fisco. Pequenas e médias empresas, sem canais diretos de comunicação com a Receita Federal, são excluídas de uma ferramenta que poderia reduzir conflitos e otimizar a regularidade fiscal. Essa exclusão aumenta as dificuldades de acesso a informações essenciais para a conformidade tributária.
2.2. Impacto Prático e Aumento dos Custos para Pequenas Empresas
A falta de acesso ao Receita de Consenso eleva o custo de conformidade para pequenas e médias empresas, que frequentemente têm que recorrer a consultorias e advogados para entender as diretrizes fiscais. Sem a possibilidade de resolver conflitos consensualmente, essas empresas acabam mais vulneráveis a autuações, o que pode incentivar a informalidade e prejudicar o desenvolvimento econômico.
2.3. Comparação Internacional
Programas similares em outros países, como no México e em Portugal, possuem critérios mais inclusivos e democratizam o acesso ao diálogo tributário. Nesses países, pequenas e médias empresas também podem utilizar canais específicos para resolver conflitos com o fisco, promovendo uma cultura de compliance e previsibilidade fiscal para contribuintes de todos os portes. A experiência internacional indica que um modelo inclusivo pode resultar em maior eficiência e justiça tributária.
No México, a Administração Tributária (SAT - Servicio de Administración Tributaria) possui um programa que permite acordos prévios e procedimentos de consulta para contribuintes de todos os portes. As pequenas e médias empresas têm canais específicos para esclarecer dúvidas tributárias e aduaneiras sem precisar de certificações restritivas, como acontece com o Receita de Consenso. Além disso, o SAT oferece uma plataforma online que permite o diálogo e a resolução de questões fiscais de forma facilitada para empresas de menor porte, promovendo maior inclusão e segurança jurídica.
Em Portugal, o sistema de arbitragem tributária é amplamente acessível e não se restringe a grandes empresas. Pequenas e médias empresas podem utilizar esse sistema para resolver disputas tributárias, com foco em transparência e economia processual. Além disso, Portugal lançou o Programa de Conformidade Cooperativa, similar ao CONFIA, mas com requisitos de adesão mais flexíveis, ampliando o acesso de empresas de médio porte. Esse programa promove o diálogo direto com a Autoridade Tributária e Aduaneira, incentivando práticas de conformidade sem restrições tão rigorosas quanto as do Brasil.
3. Como as empresas excluídas podem buscar direito a acessar o programa
A Ação pelo Procedimento Comum é uma alternativa mais abrangente para contestar a exclusão ao Receita de Consenso e pedir que a empresa possa gozar deste canal de comunicação com a Receita Federal.
Essa ação permite ao contribuinte argumentar detalhadamente sobre a inconstitucionalidade e ilegalidade da restrição, buscando uma decisão que reconheça seu direito ao acesso ao programa.
É a opção mais adequada quando a empresa busca um reconhecimento abrangente de seu direito de acesso ao Receita de Consenso, podendo fazer uma análise aprofundada e completa dos impactos da restrição. Com a possibilidade de fase probatória e pedidos como tutela antecipada, a ação pelo procedimento comum se mostra como a via mais acertada para o pedido de ingresso no programa.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
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