Ação Declaratória de Inexigibilidade de Débito de Demurrage - Um novo cenário favorável aos importadores
- Rogerio Chebabi
- 1 de abr.
- 4 min de leitura

A ação declaratória de inexigibilidade de débito é um instrumento processual frequentemente utilizado no âmbito do Direito Civil e Empresarial para questionar a legitimidade de cobranças consideradas indevidas. No contexto do comércio internacional, um exemplo recorrente envolve a cobrança de demurrage – a sobretaxa aplicada por transportadoras ou agentes logísticos quando contêineres não são devolvidos dentro do prazo estipulado (free time). Este artigo analisa as peculiaridades de uma ação desse tipo, com base em um caso hipotético que reflete situações reais, destacando os fundamentos jurídicos e a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Contexto Fático: Um Exemplo Prático
Imagine uma empresa brasileira que importa equipamentos da China, com a mercadoria transportada em um contêiner que chega ao Porto de Santos em 8 de janeiro de 2025. A Declaração de Importação (DI) é registrada em 13 de janeiro, mas o processo é parametrizado no canal vermelho, exigindo conferência física. Devido a uma operação padrão (greve dos auditores fiscais) e atrasos administrativos da Receita Federal, a inspeção física é agendada para 26 de fevereiro, e o desembaraço da carga só ocorre em 19 de março – mais de dois meses após a chegada. Nesse ínterim, a empresa solicita a desova antecipada do contêiner em 27 de janeiro, mas erros na autorização da Receita Federal e demora do terminal alfandegado resultam na efetivação da desova apenas em 17 de fevereiro, com a devolução do contêiner ao transportador em 19 de fevereiro.
Apesar de todos os esforços da importadora para mitigar os atrasos, a agente de carga responsável pelo processo logístico emite uma notificação cobrando USD 20.500,00 por demurrage, referente ao período de 23 de janeiro a 19 de fevereiro. Alega-se que o atraso na devolução ultrapassou o free time. Diante disso, a empresa ajuíza uma ação declaratória de inexigibilidade de débito, com pedido de tutela de urgência, argumentando que a retenção do contêiner decorreu de fatos alheios à sua vontade, configurando força maior.
Fundamentos Jurídicos: Força Maior e Onerosidade Excessiva
O cerne da argumentação repousa no artigo 393 do Código Civil Brasileiro, que isenta o devedor de responsabilidade por prejuízos decorrentes de caso fortuito ou força maior, salvo se expressamente assumiu tal risco. No exemplo, a retenção prolongada do contêiner pela Receita Federal, agravada pela greve dos auditores e erros administrativos, é apresentada como um evento imprevisível e inevitável, fora do controle da importadora.
A jurisprudência do TJSP reforça essa tese. Em decisão da 16ª Câmara de Direito Privado (Apelação Cível nº 1017296-83.2020.8.26.0562), o tribunal assentou que:
"No mais, há justa causa para o atraso. A autoridade alfandegária pode às vezes reter as mercadorias para análise e isso faz com que o container fique retido e sua devolução ultrapasse o prazo ajustado, o que não implica em carrear ao importador, consignatário ou ao proprietário do navio, a reponsabilidade pelas estadias que ultrapassarem o prazo contratual. Realmente esse obstáculo que é imprevisível, uma vez que a Receita é que faz a escolha de forma subjetiva, não pode gerar despesas ao consignatário, sobretudo quando se trata de comerciante ou empresa de pequeno porte, que fatalmente não suportaria absorver o valor cobrado."
O relator, Desembargador Miguel Petroni Neto, destacou que a imprevisibilidade da retenção administrativa não pode onerar o importador, especialmente pequenas empresas incapazes de absorver tais custos.
Outro fundamento invocado nas ações é o artigo 478 do Código Civil, que prevê a resolução contratual por onerosidade excessiva em casos de eventos extraordinários e imprevisíveis. No exemplo, a importadora sustenta que a cobrança de demurrage tornou a obrigação desproporcionalmente gravosa, resultado direto da paralisação da Receita Federal. Adicionalmente, cita-se a Resolução Normativa ANTAQ nº 62/2021, cujo artigo 21, § 2º, inciso II, suspende a contagem do prazo de livre estadia em situações de força maior, reforçando a inexigibilidade da cobrança:
Art. 21. A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular.
(...)
§ 2º A contagem do prazo de livre estadia do contêiner será suspensa em decorrência de:
(...)
II – caso fortuito ou de força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente.
Legitimidade Passiva e Natureza da Demurrage
A ação também aborda a legitimidade passiva da agente de carga, que, embora não seja a transportadora final, atua como "armador sem navio" e realiza a cobrança diretamente. Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. DEMURRAGE. ARMADOR SEM NAVIO . LEGITIMIDADE. TERMO DE RESPONSABILIDADE. VÁLIDO. COMPENSAÇÃO DE VALORES . IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. A autora atua como agente de cargas e como representante do armador, dispondo de poderes para realizar cobranças de valores de sobrestadia de contêiner ocasionado pela ultrapassagem do prazo preestabelecido para devolução do equipamento de armazenamento utilizado (demurrage) . 2. Sendo o Termo de Responsabilidade firmado entre o importador e o armador sem navio prática regular nas operações de transporte marítimo, constituindo obrigações livremente assumidas, nada impede a exigência do cumprimento do que foi estipulado naquele instrumento particular de negociação. 3. É impraticável a compensação de valores quando a vitória da apelante ainda se encontra num cenário especulativo, sem um julgamento conclusivo que confirme a existência do crédito que alega ter direito . 4. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-ES - APELAÇÃO CÍVEL: 00118606820168080024, Relator.: MARCOS VALLS FEU ROSA, 4ª Câmara Cível)
Conclusão
A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível nº 1017296-83.2020.8.26.0562, julgada pela 16ª Câmara de Direito Privado, marca um novo cenário favorável aos importadores no contencioso envolvendo a cobrança de demurrage.
Antes desse precedente, questionar judicialmente tais cobranças era extremamente arriscado para os importadores, pois a jurisprudência tendia a validar os contratos de transporte e os termos de responsabilidade firmados com agentes de carga ou armadores, frequentemente resultando na condenação do importador ao pagamento não apenas da sobretaxa, mas também das custas processuais e honorários de sucumbência.
Com o reconhecimento da retenção de contêineres pela Receita Federal como força maior – um evento imprevisível e alheio à vontade do importador –, o TJSP abriu um caminho mais seguro para ações declaratórias de inexigibilidade, reduzindo o risco financeiro e incentivando a defesa dos direitos dos importadores frente a cobranças indevidas. Rogerio Zarattini Chebabi
Advogado - OAB/SP 175.402
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