Ameaça ao Simples Nacional: Análise das Inconstitucionalidades da Tributação de Dividendos na Lei 15.270/2025
- Rogerio Chebabi

- há 11 minutos
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Introdução
A promulgação da Lei nº 15.270, em 26 de novembro de 2025, inaugurou um novo e complexo capítulo na tributação da renda no Brasil que vigorará em 2026. Ao reintroduzir a cobrança de Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos, a norma gerou um cenário de profunda incerteza jurídica, especialmente para os mais de oito milhões de contribuintes optantes pelo Simples Nacional.
A aparente colisão entre a nova lei ordinária e o regime especial previsto na Lei Complementar nº 123/2006 levanta questionamentos sobre a constitucionalidade da exigência e impõe aos operadores do direito a análise das medidas judiciais cabíveis para a proteção dos direitos dos contribuintes.
Este artigo tem por objetivo analisar e alertar comissárias de despachos, importadores, exportadores e sociedades de advogados, sob uma ótica técnica e informativa, as principais teses de inconstitucionalidade – tanto formais quanto materiais – aplicáveis à pretensão fiscal de tributar os dividendos no âmbito do Simples Nacional, bem como discutir as estratégias processuais adequadas para levar a matéria à apreciação do Poder Judiciário.
O Panorama da Nova Tributação: Um Ataque em Duas Frentes
A Lei nº 15.270/2025 alterou a legislação do Imposto de Renda para, em síntese, estabelecer duas novas formas de tributação sobre o capital:
1.Retenção na Fonte (IRRF): Uma retenção de 10% sobre a parcela dos lucros ou dividendos que exceder R$ 50.000,00 e mais 10% sobre os R$ 50.000,00, pagos por uma mesma pessoa jurídica a um beneficiário pessoa física, dentro do mesmo mês.
2.Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM): Uma tributação mínima no ajuste anual, incidente sobre a soma de rendimentos recebidos no ano-calendário que ultrapassar R$ 600.000,00. Para quem ultrapassar esse limite, será aplicada uma alíquota progressiva, que começa em 0% logo após os R$ 600.000 e pode chegar a R$ 1.200.000,00. Note que o limite de R$ 600.000 considera a soma de todos os rendimentos do contribuinte, incluindo salários, aluguéis, e, notavelmente, a distribuição de lucros e dividendos que, até então, eram isentos.
A redação da lei, contudo, é genérica e não faz qualquer menção ou ressalva expressa quanto à sua aplicabilidade ou não ao regime do Simples Nacional.
Isso dá margem à perigosa interpretação de que a nova regra seria universal, o que significa que os dividendos isentos pela LC 123/2006 poderiam ser duplamente alcançados: primeiro, pela retenção mensal na fonte; segundo, ao serem computados na base de cálculo do IRPFM anual do sócio.
Saliente-se que a sigla IRPFM refere-se ao Imposto sobre a Renda da Pessoa Física Mínimo, uma nova modalidade de tributação no Brasil, prevista para entrar em vigor a partir do ano-calendário de 2026, com a primeira apuração na declaração de 2027.
A Inconstitucionalidade Formal: Violação à Hierarquia Normativa e à Reserva de Lei Complementar
O principal e mais robusto argumento contra a exigência reside em sua flagrante inconstitucionalidade formal. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 146, inciso III, alínea "d", estabeleceu uma reserva de competência absoluta, determinando que cabe exclusivamente à lei complementar a definição de tratamento tributário diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte.
Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(...)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados...
Nesse contexto, a Lei Complementar nº 123/2006 foi recepcionada como o diploma legal que concretiza esse mandamento constitucional. Seu artigo 14 é explícito ao garantir a isenção do Imposto de Renda sobre os lucros distribuídos pelas empresas do Simples Nacional, tanto na fonte quanto na declaração de ajuste do beneficiário.
Art. 14. Consideram-se isentos do imposto de renda, na fonte e na declaração de ajuste do beneficiário, os valores efetivamente pagos ou distribuídos ao titular ou sócio da microempresa ou empresa de pequeno porte optante pelo Simples Nacional, salvo os que corresponderem a pró-labore, aluguéis ou serviços prestados.
A Lei nº 15.270/2025, por ser lei ordinária, não possui a força normativa necessária para alterar, revogar ou sequer se sobrepor a uma disposição de lei complementar em matéria reservada pela Constituição. Trata-se de uma violação direta à hierarquia das normas, pilar do Estado de Direito.
Incluir os dividendos isentos do Simples na base de cálculo do IRPFM é uma forma indireta de tributá-los, o que representa uma fraude à Constituição e à vontade do legislador complementar. A isenção na "declaração de ajuste" prevista na LC 123/2006 visa justamente impedir que esses valores sejam somados a outros rendimentos para fins de tributação anual, exatamente o que o IRPFM se propõe a fazer.
A Inconstitucionalidade Material: O "Efeito Salto" e a Ofensa à Capacidade Contributiva
Para além do vício formal, a sistemática de apuração da nova tributação, a depender da interpretação que venha a ser adotada pela Receita Federal, pode configurar uma severa inconstitucionalidade material. Caso se entenda que, ao ultrapassar o limite de R$ 50.000,00, a tributação de 10% incidirá sobre a totalidade do valor distribuído – e não apenas sobre o excedente –, estaremos diante do chamado "efeito salto" (notch effect).
Essa distorção cria um cenário ilógico e confiscatório, como demonstra a tabela abaixo:
Cenário | Valor Distribuído | Imposto Devido (hipótese) | Valor Líquido Final |
A | R$ 50.000,00 | R$ 0,00 | R$ 50.000,00 |
B | R$ 50.001,00 | R$ 5.000,10 | R$ 45.000,90 |
Tal resultado é a antítese do princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF), pois um acréscimo marginal de riqueza leva a uma drástica redução da renda disponível. Fere, ainda, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, transformando o tributo em uma penalidade irracional, e pode, a depender do caso concreto, assumir um caráter confiscatório, vedado pelo art. 150, IV, da CF.
Soluções Judiciais e Estratégias Processuais
Diante do justo receio de autuação, os contribuintes podem se valer do Poder Judiciário para obter um provimento que declare seu direito. É fundamental, contudo, a escolha da via processual adequada, evitando-se o óbice da Súmula 266 do STF, que veda o mandado de segurança contra lei em tese.
1.Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária:
Esta é, possivelmente, a medida mais apropriada. Por meio dela, o contribuinte não ataca a lei em abstrato, mas sim a relação jurídica concreta que a autoridade fiscal pretende estabelecer com base nela.
O pedido central é para que o Judiciário declare que não existe a obrigação de a empresa, optante pelo Simples Nacional, reter e recolher o Imposto de Renda sobre os dividendos, nem a obrigação de seus sócios computarem tais valores na base de cálculo do IRPFM. A ação pode e deve ser cumulada com um pedido de tutela provisória de urgência (art. 300, CPC) para suspender a exigibilidade do crédito tributário desde o início do processo.
2.Mandado de Segurança Preventivo:
Também é uma via processual viável, desde que se demonstre, de forma inequívoca, a existência de um justo receio de sofrer um ato ilegal e iminente por parte da autoridade coatora. Não se discute a lei em tese, mas sim o receio concreto de que a autoridade fiscal, com base na interpretação da nova lei, venha a praticar um ato de lançamento ou cobrança. O periculum in mora é inerente à vigência da norma, e o direito líquido e certo se ampara nas inconstitucionalidades apontadas.
Em ambas as estratégias, a fundamentação deve ser robusta, explorando tanto os vícios formais quanto os materiais da exigência tributária, e amparada pela sólida jurisprudência do STF sobre a reserva de lei complementar para o Simples Nacional.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402 e OAB/DF 86.279


























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